O Planeta Vermelho desenhado

Exposição de desenhos no MARGS

A partir de 3 de outubro, às 19h, o arquiteto e artista Fábio André Rheinheimer apresenta exposição de desenhos Planeta Vermelho nas Salas Negras do MARGS, Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli. A mostra pode ser visitada de 4 de outubro a 26 de novembro, de terças a domingos, das 10h às 19h, com entrada gratuita. Visitas mediadas podem ser agendadas pelo e-mail educativo@margs.rs.gov.br. Planeta Vermelho é composta por 16 obras que celebram o imaginário do artista, representado em uma topografia do seu universo poético, por meio de técnica apurada e subjetividade.

Conheci os desenhos de Fábio André há anos, em propostas talvez mais organizadas, contidas, em outros tons, expostas além fronteiras, mas já um prenúncio da viagem pelo Planeta Vermelho. Estava tudo ali na sua poética. Desenho é a base do talento, uma técnica que expõe os instrumentos do autor para quaisquer outras formas de artes visuais. Este trabalho já contém em si essas possibilidades, dentro ou fora do suporte 2D.

Exposição de desenhos de Fábio André no MARGS - portal eleoneprestes.com
(Fotos Regina Peduzzi Protskof, Divulgação)

Agora leia o texto de Francisco Dalcol, jornalista, crítico de arte e pesquisador talentoso (preciso usar esse adjetivo porque admiro o trabalho dele e quero dizer isso) sobre a obra de Fábio André:

Aquilo que se insinua sem se afirmar

O esforço em desvendar o espaço para compreender seus modos de representação acompanha a História da Arte desde suas mais remotas manifestações. Nessa busca, tanto artistas como arquitetos foram levados a explorar soluções por diversas vias, porém imbuídos de um mesmo objetivo: planificar em uma superfície como o papel ou a tela o que se dava a ver na tridimensionalidade do espaço — e também o seu inverso. Foi assim, por exemplo, que se desenvolveram os saberes do desenho geométrico projetivo e dos tratados de perspectiva da Idade Média e do Renascimento.

Esse desejo de dominar o espaço pela sua representação encontrou no desenho o meio privilegiado de apreensão do real. A abordagem científica que é própria à razão conduziu ao domínio dos códigos visuais da realidade segundo os princípios rígidos das leis da matemática. Daí, ao mesmo tempo, ter-se desenvolvido a formação de um olhar naturalista que logo impôs um estatuto visual que concedeu privilégio à interpretação mimética da realidade, no sentido de reprodução e fidelidade ao que se vê e da maneira como se vê.

O que as correntes modernas da abstração trouxeram com o século XX foi, entre outras coisas, a possibilidade de desnaturalizar esse olho que por séculos disciplinou-se a criar sentidos somente por fidedigna correspondência a um referente real externo. Ao se voltar ao que é específico à planaridade do meio, a orientação abstrata liberou o olhar da servidão naturalista a que fora submetido, confrontando o observador a experenciar o fenômeno visual a partir de novos entendimentos.

A realidade não mais se encontrava necessariamente lá fora, na feição das coisas como elas se apresentam, mas, sim, dentro de uma realidade própria ao sujeito na sua capacidade de conferir sentido às formas em um processo interior e mental. Uma realidade enquanto imaginário, fruto da possibilidade de se criar imagens a partir do que ainda não era nem estava dado, mas somente concebível enquanto pensamento.

No campo da arte, o impacto não foi algo menos que tremendo, pois ao artista não cabia mais oferecer a representação do mundo conforme se aparentava ao olhar. Seu estímulo passava a ser a possibilidade de poder ver tudo de outro jeito, muitas vezes radicalmente diferente. Foi então que o artista se viu lançado a percorrer uma realidade que era somente sua, porque localizada no interior de seu imaginário, ao qual a chance de acesso era dada somente a ele. Assim, esse novo entendimento “do ver” logo levou ao desafio “do mostrar”. Ou melhor, “do como mostrar”. Eis a empreitada encarada por diversos artistas desde então, como é agora o caso de Fábio André Rheinheimer em seu mais novo trabalho.

Exposição de desenhos de Fábio André no MARGS - portal eleoneprestes.com

“Planeta Vermelho” é a reunião de uma série de trabalhos de inegável orientação abstrata. O caminho até eles é conduzido pelo interesse do artista em tornar expresso um imaginário que antes existe apenas como ideia e conceito em sua poética. Estamos falando de um universo particular ficcional que convoca o desenho como recurso para estabelecer comunicação sobre algo que inicialmente habita apenas o universo criativo do artista — que se é real ao sujeito, é abstrato para o outro. Nesse sentido, o desenho não deixa também de corresponder a um desejo de projeção das profundezas da subjetividade individual para a exterioridade comum ao mundo e aos outros.

Para Fábio André Rheinheimer, seus desenhos oferecem visões de relevo, como parte integrante de um imaginário sobre a superfície do referido Planeta Vermelho. É como se ele estivesse esboçando a topografia do terreno de pouso para onde nos leva em um plano de voo pelo seu universo poético. Embora o artista veja apenas pedras sobre pedras em seus desenhos, em um ato talvez de modéstia sobre o seu trabalho, aceitar essa visão de pronto seria reduzir a abertura que a arte pode proporcionar ao desestabilizar percepções.

Sendo arquiteto de formação, Fábio André Rheinheimer já havia tido no passado uma relação instrumental com o desenho geométrico. Recentemente, reencontrou os lápis de cor e se viu experimentando um tipo de desenho um tanto diverso do que praticara na arquitetura. Ele continuava se valendo das formas geométricas, mas a rigidez do pensamento matemático cedera lugar à liberdade do criar. Se acompanharmos as linhas, perceberemos que elas fingem ser perspectiva, pois o que está contido nelas é algo de indisciplina e desvio, que sempre escapa à regra ou não a confirma. Ao observarmos as tramas que resultam das composições, também nada nos oferecerá o conforto da explicação do que são ou possam ser.

Esses desenhos estabelecem jogos dinâmicos com os planos e as volumetrias por baralharem nossos códigos visuais pré-figurados. São jogos porque o que Fábio André Rheinheimer busca é extrair sensações pelo recurso da ilusão, interessado nas maneiras como cada percepção é atingida e ativada. Só que não se trata de ilusão de ótica como pode parecer, mas de acionar os artifícios ilusórios do desenho em sua tarefa de representar o tridimensional planificando-o.

Exposição de desenhos de Fábio André no MARGS - portal eleoneprestes.com

São desenhos que não fazem mais do que arquitetar espaços, ainda que tais espaços não sejam reais nem encontrem referentes externos. Apenas o título da série — “Planeta Vermelho” — pode sugerir algo que a cultura se encarregue de nomear. Se abrirmos mão da referência endereçada ao planeta Marte, logo nos veremos desamparados em meio às formas e volumes que se movimentam e confluem no plano do desenho. Aqui, desamparo significa potencialidade, uma vez que somente assim temos a chance de despir o olhar naturalizado para que possamos ver nos trabalhos o que neles se insinua sem se afirmar.

Francisco Dalcol  — Jornalista, crítico de arte e pesquisador. Doutorando em Artes Visuais — História, Teoria e Crítica (UFRGS) Fábio André Rheinheimer é arquiteto, artista visual e curador independente, participou de diversas exposições coletivas, exposições individuais e salões de arte. Atua profissionalmente nas áreas de arquitetura e artes visuais, em Porto Alegre, onde reside. Contato: grafik4.wordpress.com

 

Escrito por
Mais de Eleone Prestes

Prêmio Salão Design: os 11 vencedores da 25a. edição

Com 35 anos de história, o Prêmio Salão Design conquistou credibilidade internacional na...
Leia Mais

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *