A arquiteta Ingrid Stemmer criou a partir de uma obra de arte o projeto de interiores de um apartamento comprado para acomodar uma pintura. Para abrir alas à nova aquisição – a pintura acrílica sobre tela Amelie, obra do artista Nelson Wilbert, com 1m50cm x 1m50cm – dois colecionadores de arte não tomaram apenas a decisão de mudar o décor em função do quadro. Os proprietários trocaram de endereço, em Porto Alegre, para acomodar na ocasião o mais recente integrante do apartamento. Mesmo a chegada da obra tendo sido planejada, porque nasceu sob encomenda e muito desejada, era preciso fazer a mudança para garantir um local solene à Amelie. Escolhida pelas postagens no Instagram do escritório Stemmer Rodrigues, a arquiteta Ingrid Stemmer logo batizou toda o projeto como Casa Amelie e entendeu ser uma constante o crescimento daquele acervo. Adotou a imagem de Amelie e a importância do amor pelo colecionismo dos proprietários como fonte de inspiração. Sairia dali a paleta cromática para o projeto e a solução para o universo vivo das obras de arte.
– Nunca estive no apartamento sem que as obras não tivessem mudado de lugar – diz Ingrid, que destinou um lugar especial ao retrato protagonista do projeto, baseado no cartaz do O fabuloso destino de Amélie Poulain, filme apreciado pelos moradores.
Essa característica do lifestyle da dupla de aficionados por arte implorava por um projeto flexível: Ingrid precisava riscar da vida deles o constante abre-e-fecha de buracos e a escravidão da necessária colocação de buchas nas paredes a cada quadro novo, porque o grande volume de aquisições tem sido de obras bidimensionais. Criatividade a várias mãos posta em prática no escritório, surgiu uma estrutura metálica que é a protagonista do projeto, ao lado da Amelie, claro. Tudo começou com a inspiração no acervo de imagens de gradis coletadas durante anos por Ingrid, uma pessoa interessada em muitas vertentes criativas, dessas que cultivam a capacidade de surpreender com seu trabalho. Executado intencionalmente com ar despojado, o gradil em quatro módulos diversos, montados de várias formas, tem na disposição a 5cm da parede um recurso para dar profundidade e, além de banir furos, evitar riscos na superfície a cada troca de posição. Ganchos do tipo usado para pendurar utensílios de cozinha são recursos para dispor os quadros com facilidade. Na base, um perfil de LEDs e, acima, um teto de espelhos completa a magia e faz crescer visualmente o pé-direito.
Paleta de cores
Na paleta cromática da Amelie, a pintura na parede atrás das obras da grade de metal a serviço da arte é verde. Na mesma cor, mas em tom mais luminoso, Ingrid criou uma bay window que convida à contemplação dos guapuruvus e jacarandás, árvores características de vários bairros de Porto Alegre. Já no forro, outra solução surpreendente: papel de parede. A aparência incomum decorre da criação da arquiteta, que fotografou uma parede de concreto de outro projeto do seu escritório e adesivou a imagem no teto. Isso porque não era possível manter o forro original. Havia a necessidade de fazer um rebaixamento em gesso para acomodar os dutos do ar-condicionado. A primeira escolha de Ingrid sempre é a de eleger soluções sustentáveis quando possível. Outros toques de cor na área social: os corrimões vermelhos, originais do edifício, foram mantidos e a janela da área de serviço é laranja. Esta cor surge também no dormitório, onde contracena com outra obra de Wilbert, da icônica série de releituras da Mona Lisa. O vermelho explode nas pastilhas do banheiro, uma alusão a esses ambientes coloridos em construções de décadas atrás. Mas a maioria das paredes é branca, em tom off white que lembra papel de folha de desenho.
Mobiliário assinado e espaços amplos
Uma importante premissa do projeto era dar fluidez aos ambientes no apartamento localizado em um prédio da segunda metade dos anos 1980. Assim, muitas vigas foram ocultadas para criar espaços amplos na planta, originalmente com três ambientes de dormitórios. A arquiteta posicionou a cozinha no centro da casa, atrás do núcleo do jantar. Os proprietários adoram receber e tudo precisava ficar à mão. Em uma parede de pastilhas, um nicho para a geladeira.
Compõem o mobiliário do apartamento peças de design que já pertenciam aos proprietários em meio a novas aquisições. Além da poltrona Mole e sua banqueta, havia o banco Mocho e uma poltrona Tetê, todos do mestre Sergio Rodrigues. Ingrid então especificou outra poltrona para formar uma dupla. Entre os estofados, entrou a nova mesa Água de Jacqueline Terpins sobre o tapete reloaded. Design combinado à arquitetura criam a proposta única de Ingrid Stemmer. A arquiteta levou para o projeto de interiores pastilhas usadas em fachadas, dispostas na parede na frente daquela com as obras de arte no estar, fazendo um jogo de contraste de cheios e vazios, linhas retas e curvas, claros e escuros, antigos e novos.
Foram criados um “mega closet” e um escritório na frente da janela entre os ambientes propostos na intervenção. Foi uma coincidência ter um novo home office no período da quarentena, que coincidiu com a época em que a execução do projeto foi concluída – entre março e maio de 2020. Como o perfil dos moradores e a história de todo o projeto é incomum, faz sentido que a reforma e o décor tenham ficado prontos em um período tão atípico em que o lar virou o ponto de partida e o porto de chegada na quarentena.
São pessoas de perfis ricos, com muitos interesses, hobbies, colecionismos e histórias de família. O pai de um deles foi amigo na juventude do artista Ado Malagoli que dá nome ao Museu de Arte do Rio Grande do Sul e, assim, foi a todas as exposições do início de carreira do amigo e adquiriu muitas obras que hoje fazem parte do acervo do filho. E o outro morador é amigo do autor da pintura acrílica Amelie, por isso conseguiu que o artista aceitasse uma encomenda – não sem muita insistência. A coleção tem obras de vários artistas nacionais e internacionais de períodos e estilos diferentes, de figurativos a abstratos – de Salvador Dali, Leopoldo Gotuzzo e Ado Malagoli a Volpi e Nelson Wilbert, passando pela italiana Pietrina Checcacci. Esse panorama do mundo da arte, que torna quase impossível de enumerar toda a coleção, que merece ser catalogada, tornou o projeto de arquitetura ainda mais instigante e desafiador. Resultado: nasceu uma peça única, como se diz sobre uma obra de arte que não tem reprodução.
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